No artigo seguinte, publicado na Folha do dia 11 de março último, o poeta Ferreira Gullar faz uma reflexão sobre a criminalidade e suas causas, além de questionar o destemor da punição pelos criminosos. Leia a seguir ou acesse
Viver com medo
Três homens, dois de 25 anos e um de 27, mataram a facadas, num apartamento em Copacabana, os franceses Jerôme, Christian e Delphine, dirigentes da ONG TerrAtiva, que os haviam acolhido e transformado em cidadãos. Társio, autor do plano homicida, que trabalhava na administração da ONG, aprendera francês, cursara universidade e recebera por prêmio ir à França, de graça, assistir à Copa do Mundo.
Há poucos dias, Delphine descobriu que Társio roubara R$ 80 mil da organização e o convidou para uma conversa na presença do contador da entidade. Ele, então, decidiu assassinar os seus benfeitores, com a ajuda de Luiz e Michel, também amparados pela ONG. E isso com requintes de perversidade, conforme a imprensa noticiou para horror do país, horror tanto maior neste momento em que a cidadania, revoltada, exige das autoridades providências para deter a criminalidade. Não há demonstração mais evidente de que, no Brasil, os bandidos não temem punição.
E com razão, já que boa parte dos delitos é cometida por criminosos que, condenados pela Justiça, estão livres, ou porque fugiram da prisão, ou porque foram soltos -graças ao benefício conhecido como "progressão da pena". Esse benefício -cuja modificação acaba de ser aprovada pelo Congresso- consiste em permitir que o criminoso seja posto em liberdade tendo cumprido somente um sexto da pena. Ou seja: se praticou um crime brutal e recebeu a condenação de 30 anos de prisão, estará de volta à liberdade cumpridos apenas cinco anos.
A lei prevê que o condenado só terá direito ao benefício se se comportar bem na cadeia, dando provas de que já não representa ameaça à segurança dos demais cidadãos. E o que ele faz? Finge-se de bonzinho, de bem-comportado, induz outros presos a praticarem violências e desmandos dentro do presídio, ameaçando matá-los se o denunciarem. Todos, com raras exceções, pela lei ainda em vigor, são libertados após cumprirem um sexto da pena.
Vimos, há pouco, serem condenados a mais de 400 anos de prisão os bandidos que queimaram vivas oito pessoas dentro de um ônibus aqui no Rio. Ao ler essa notícia, o cidadão de boa-fé acredita que a Justiça está cumprido com rigor o seu papel, quando, na verdade, uma tal condenação não tem valor real algum, é simbólica, para inglês ver, já que a lei não permite penas acima de 30 anos. E, como todos os condenados só cumprem um sexto da pena, pode-se dizer que, no Brasil, a pena máxima é de apenas cinco anos, e será agora de apenas 12, matem quantos (inocentes) matarem.
Voltando ao caso dos homicidas que executaram seus benfeitores, da ONG TerrAtiva, impõe-se a seguinte questão: se for verdade que o jovem é levado ao crime por não ter quem o apóie, eduque e lhe dê emprego, como se explica a ação feroz desses três homens que, desde a adolescência, receberam tudo isso? Não resta dúvida que esse fato põe por terra a tese de que a causa única do crime é social e que, eliminada a desigualdade, elimina-se a criminalidade.
Não obstante essa evidência, não devemos concluir que o trabalho social de educação e profissionalização dos jovens carentes seja inútil. Pelo contrário, trata-se de um serviço social de importância inestimável, não porque impeça inteiramente o crime e, sim, por contribuir para a redução da desigualdade e da injustiça.
A criminalidade tem muitas e complexas causas, talvez mesmo seja impossível extirpá-la da sociedade. Não devemos ignorar que, entre os tantos fatores que a determinam, está o caráter do indivíduo, sua índole e até mesmo traços patológicos da personalidade. Há, sem dúvida, pessoas dóceis e afetuosas, como há também pessoas agressivas e cruéis. Por todas essas razões é que a polícia que não apura e não prende, a Justiça que não pune e o sistema carcerário que não reeduca só contribuem para agravar a situação de insegurança em que vivemos todos. Em face das indagações que tal situação suscita, uma providência está fora de discussão: afastar do convívio social aqueles que constituem ameaça à vida e à paz dos cidadãos. Isso não se efetivará se não nos convencermos de que a questão social não é caso de polícia, mas o crime é.
A propósito, é lamentável ouvir do presidente da República que "não devemos lançar toda a juventude à sanha da repressão, com a redução da maioridade penal". A redução é uma questão decididamente controversa, mas alguém deveria explicar a Lula que ela só se aplica aos poucos jovens que tenham cometido delitos graves e não a todos eles, indiscriminadamente.
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