Por José Godoy
Retirado da coluna CBN Express Livros
14 de setembro de 2010 – 13h22
O detalhe faz toda a diferença
Uma das principais artimanhas do romance é o manuseio do detalhe. A capacidade do autor de captar uma informação prosaica, que se deixa de lado no calor dos acontecimentos. Quando a operação é bem sucedida, ilumina a mente do leitor com deduções e conjecturas. Os sapatos gastos percebidos em meio ao traje de gala comunicam um personagem que provavelmente simula uma situação social, ou que vive ali uma última epifania, ou, quem sabe?, sua decrepitude aos olhos próximos. Que seja. O fato é carregaremos essa imagem, e seus desdobramentos como frases ou refrãos que aprendemos a decorar..
O detalhe em Tolstói
Tolstói escreveu “Ressurreição” em 1899. Ainda sobre uma Rússia monarquista, feudal. Há uma cena, que ainda hoje retorna à mente quando me lembro desse grande romance: um juiz se tranca em sua sala e retira do armário um par de halteres para exercitar os braços antes de uma sessão do júri. É impressionante como o prosaísmo desse momento vaza o tempo, para alcançar a nós, homens contemporâneos, com signos que nos são ainda facilmente localizados em nosso repertório. Nos atinge com práticas que ainda mimetizamos, povoadas de motivações que permanecem intactas entre nós.
O detalhe em Machado
Puxando pela avariada memória, um exemplo local que me ocorre é o conto de Machado, “Uns braços”. Caso de obsessão do narrador pela parte aparente do corpo da mulher admirada. O exemplo, porém, se filia a outro tipo de procedimento. Algo que cada vez é mais notável na literatura contemporânea: fazer do detalhe motivo de uma narrativa. Se a maestria de Machado transfere do objeto do desejo para a obsessão de quem deseja o cerne da história, há uma quantidade grande de autores atuais que exploram o detalhe, tornando o pitoresco em banal. No processo, o que sobra como experiência luminosa no caso de Tolstói é retomado e exposto como matéria requentada.
O detalhe faz toda a diferença II
Tudo isso para falar de hábitos de leitura. Do que lemos e do que gostaríamos de ler nos bancos escolares. Basta sair às ruas, caminhar entre jovens, navegar pelo espaço virtual para entender que o que tem sido imposto como leitura obrigatória em colégios e vestibulares está a quilômetros de distância dos interesses desse possível leitor. Perdemos essa batalha diariamente, impondo padrões que se nem mais nos servem, como podemos exigir que se aplique a uma geração que se informa na velocidade atual. Livros e escritores, é preciso que se lembre, são muitas vezes atropelados pelo tempo, pelos ciclos geracionais.
Para concluir o que mal começou
Não me parece absurdo pensar que os halteres de Tolstói estejam mais próximos dos jovens atuais do que, por exemplo, os índios com psicologia europeia de José de Alencar. Não me parece absurdo pensar que uma didática que passe pela análise da caracterização e da maestria da construção dos grandes romancistas seja mais interessante, e por que não?, mais estimulante para o jovem leitor do que os recortes sociológicos que usam obras literárias para ilustrar períodos da nossa história.
José Godoy é escritor e editor. Mestre em teoria literária pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), é editor da área de não-ficção da Globo Livros. Colabora com diversos veículos, como a revista Legado, da qual é colunista, e o jornal Valor Econômico. Desde 2006, apresenta o programa Fim de Expediente, junto com Dan Stulbach e Luiz Gustavo Medina. O blog do programa está no portal G1.
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