Passados quase trinta anos do fim da ditadura, nossa história continua obscura. E assim permanece não porque os mecanismos de pesquisa não possam ser efetivados, a fim de se saber sobre os acontecimentos daquele período. O que se esconde é a motivação que alimenta o interesse de descobrir.
Anistia alimenta tortura? |
Sejamos claros: o interesse é a vingança!
Para aqueles que acompanham a discussão sobre o tema, revolver a ditadura não é, como dizem, trazer à luz a memória dos fatos para que estes não aconteçam jamais. Não é apaziguar os espíritos daqueles que sofreram direta e indiretamente com as arbitrariedades do período.
A rememoração, a busca da verdade dos acontecimentos, o avivamento de lembranças seria satisfeito com a pesquisa histórica, com a apresentação de fatos concretos, com a análise de documentos, com a incidência de clareza sobre suspeitas a partir de elementos palpáveis.
Contudo, a ideologia atual – a da vingança – é mascarada por argumentos baseados em pressuposto humanismo moldado em modelo retórico cativante. Quem se oporia, por exemplo, a apurar o “uso inadequado da força por parte das autoridades”, cuja inércia permitiria supostamente gerar “uma cultura de impunidade e de irresponsabilidade”?
Nessa retórica, cheia de lugares-comuns semânticos, encontramos certas palavras-chave que dão tom sedutor ao discurso: uso da força, autoritarismo, autoridades, impunidade, ilegalidade. Quem é a favor de qualquer destes conceitos? Absolutamente ninguém!
As expressões são tomadas como valores universais, por exemplo, quem é contra a impunidade dos agentes do período militar também é contra a alegada impunidade que seria trazida pela PEC 37 (aquela que não autoriza o MP a investigar). E o sofisma é provocado pelo raciocínio seguinte: se na ditadura houve impunidade porque esta não era investigada, haverá impunidade se o MP também não investigar. Isto é uma falácia! Há uma redução de universos fáticos complexos para uma única ideia comum traduzida pela expressão “impunidade”.
O grupo criado para analisar os documentos já recebe nome retoricamente pomposo e falso: “Comissão da Verdade”. Não seria Comissão de Resgate da Memória? Por que se arrogar como um grupo que detém a verdade?
Fins dos anos 70 a população pedia anistia |
Aliás, a busca da verdade é algo que a humanidade pesquisa há milênios e não encontra nunca. A única coisa que se descobriu é que a verdade é dependente de contextos – e, para o chamado pensamento progressista, isto é quase um dogma! Mas, para se examinar a ditadura, existem os “donos da verdade”.
Não é a busca da verdade que ilumina o caminho da pesquisa sobre este período. Se o fosse, não se tentariam contornos para se suprimir os efeitos da chamada Lei da Anistia, já validada pelo Supremo e atacada hoje por meio de projeto de lei que tenta alterá-la, a fim de se punir os suspeitos agentes da tortura.
Averiguar a tortura e resgatar a memória são metas legítimas. O problema reside na sede de vingança, a qual para se efetivar no Estado de Direito tem de ser legitimada por estruturas de legalidade. Para isso, o uso da referida retórica.
Aqui desponta o cerne da questão. Quando a lei é alterada para esconder objetivos subliminares, permite-se que princípios historicamente construídos sejam renegados e, por sua vez, também esquecidos.
Em nome da vingança e para satisfazê-la, a noção de legalidade, que sustenta todo o sistema e principalmente o direito penal, será maculada. E encontraremos argumentos racionais para isso. Mas, se isto for feito, que será de nosso futuro?
Não estaremos nós colocando aqui a pedra fundamental para a construção de nossa Guantánamo? Não estaremos nós organizando o nosso “ato patriótico”? Lá a bandeira foi a do terrorismo contra o Estado; aqui a do terrorismo de Estado. Para supostamente lutar contra ambos, sempre haverá também supostos fundamentos de “verdade”. Quem arcará com eles depois?
Publicado originalmente em Última Instância (leia no site aqui)
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